Um novo encargo que perpetua a CDE

Um novo encargo que perpetua a CDE

Carlos Schoeps

A criação do Encargo de Complemento de Recursos para a CDE — prevista no §19 — não é uma reforma estrutural; é a institucionalização de mais uma camada de cobrança para sustentar a mesma lógica de subsídios setoriais. Na letra da lei, o §19 apenas dá existência jurídica ao encargo que o §1º, XI já havia listado como fonte de receita. Na prática, ele funciona como a ponte entre o “preciso de mais dinheiro” e o “de onde virá esse dinheiro”, mantendo a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) como um cofre permanente para políticas públicas, sem atacar a raiz do problema: o excesso de benefícios financiados na tarifa.

Pelo §20, o encargo cobre a diferença entre o valor orçado e o limite (teto) por item de despesa. É um “para-choque” que impede a CDE de “estourar por dentro” quando algum programa cresce acima da correção inflacionária prevista no §18-II. O discurso oficial é de disciplina fiscal; o efeito econômico é outro: em vez de reduzir subsídios, cria-se um mecanismo automático de recomposição — um novo encargo — para não cortar a despesa.

A forma de operacionalização também revela a ambiguidade. O próprio §20 diz que o pagamento será via redução proporcional dos benefícios custeados pela CDE, conforme regulação da ANEEL. Em tese, não seria “cobrar mais do consumidor”, mas ajustar os benefícios para “caber no orçamento”. Na prática regulatória, porém, isso exige mensuração fina do benefício, definição de critérios de rateio entre múltiplos beneficiários e mecanismos de cobrança (via distribuidora, via CCEE, mensal ou anual). É um desenho complexo, propenso a disputas e com alto risco de judicialização, sobretudo onde os benefícios são difusos ou indiretos.

O encadeamento com as demais mudanças do art. 13 cria um circuito de contenção: a despesa encontra o teto do §18; se ultrapassar, aciona-se o encargo do §19; e a ANEEL aplica a regra do §20 para “rebaixar” benefícios. Parece um freio, mas é, essencialmente, um freio que mantém o carro rodando — não troca o motor. Não há revisão de mérito sobre quais subsídios devem acabar ou diminuir; há apenas priorização de quem paga e como pagar.

Quanto a quem paga, a lei determina que os recursos virão de quotas anuais dos agentes beneficiários, na proporção do benefício auferido, e já lista contas que não se submetem ao limite (baixa renda, universalização, CCC, custos da CCEE e art. 4º-A da Lei 12.111). Em tese, isso endereça “quem recebe o benefício paga”. Em termos operacionais, contudo, a ANEEL precisará:

  • identificar o beneficiário em cada rubrica;
  • mensurar o benefício (com método auditável);
  • ratear entre múltiplos beneficiários;
  • definir a forma e a periodicidade de cobrança.

E há um limite jurídico claro: a agência não pode transferir a conta para “todos os consumidores”, porque o caput e o §2º do art. 13-A fixam que o encargo é devido pelos beneficiários. Alterar isso exigiria nova lei. O risco concreto é um sistema opaco e litigioso, no qual a identificação do “benefício” vira moeda regulatória, atrasando decisões e represando custos que, no fim, tendem a reaparecer na tarifa.

Diagnóstico:

  • Problema de origem não foi enfrentado. Em vez de reduzir subsídios e limpar a base da CDE, criou-se mais um encargo com promessa de “disciplina”.
  • Complexidade regulatória e risco jurídico. Mensurar e ratear “benefícios auferidos” é tecnicamente difícil, abre espaço a contestações e insegurança para investimentos.
  • Risco de perpetuação do nível de encargos. O teto limita o crescimento, mas o patamar continua alto; o encargo vira válvula de escape para não cortar gasto.
  • Transparência limitada para o consumidor. Sem uma trilha clara de quais subsídios serão reduzidos quando o teto for atingido, o mecanismo pode naturalizar a CDE como imposto setorial permanente.

Encargo de Complemento de Recursos é um remendo sofisticado que segura o teto, mas não baixa o prédio. Para modicidade tarifária e previsibilidade de longo prazo, o setor precisa de menos CDE e mais orçamento fiscal onde houver interesse público legítimo, além de regra clara de saída para subsídios que, hoje, se eternizam na tarifa de energia elétrica. Para empresas e consumidores, o recado permanece: planeje com encargos altos, exija transparência por rubrica e pressione por reformas que cortem despesas, não apenas redesenhem arrecadações.

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