Lei de conversão da MP 1.300 traz responsabilidade civil para o ONS
A alteração do Art. 14 da Lei nº 9.648/1998, ao atribuir responsabilidade direta — civil, administrativa e, em alguns casos, penal — a profissionais do ONS ou a pessoas jurídicas contratadas para atividades ligadas à formação de preços, representa um avanço relevante na governança do setor elétrico. Trata-se de uma medida bem-vinda, dada a sensibilidade e o valor estratégico das informações com as quais esses agentes operam.
Há muito tempo circulam relatos no mercado de que alguns agentes conseguiam antecipar, com elevada precisão, a tendência e até o nível do Custo Marginal de Operação (CMO) antes de sua divulgação oficial. Caso tais suspeitas sejam verdadeiras, a posse dessas informações configuraria uma vantagem indevida de alto valor econômico, capaz de permitir a montagem de portfólios de contratos com ganhos financeiros expressivos e prejuízos difusos ao mercado.
A nova regra atua diretamente sobre um ponto nevrálgico do desenho institucional: o elo técnico-operacional em que premissas, dados e cálculos se convertem em sinais econômicos determinantes para o setor. Ao abranger desde a execução até a supervisão, a lei cobre todo o ciclo da formação de preços, introduzindo a responsabilização inclusive para pessoas físicas que, historicamente, se protegiam sob a personalidade jurídica do Operador.
O mérito da medida está em internalizar o custo de condutas oportunistas ou negligentes naqueles que detêm e manipulam informações críticas. É sabido no setor que pequenas alterações de parâmetros ou ajustes em dados de entrada dos modelos de despacho podem gerar impactos significativos nos preços de mercado. A previsão de sanções pessoais ou societárias eleva o padrão de cuidado (duty of care), desestimula manipulações e valoriza controles de integridade e segregação de funções.
Entretanto, a efetividade da regra é limitada pela exigência de comprovação de dolo ou culpa grave. Essa redação cria brechas para que profissionais se defendam alegando erros aleatórios ou falhas sem intenção, dificultando a demonstração de responsabilidade. A definição de “culpa grave” precisa ser detalhada em regulamentação infralegal, incluindo situações como descumprimento de procedimentos formais, ausência de dupla checagem em mudanças críticas, bypass de validações obrigatórias, uso de credenciais
compartilhadas ou inserção de parâmetros fora de faixas aprovadas sem justificativa formal. Sem essa tipificação, a lei corre o risco de se tornar inócua, estimulando disputas periciais longas e onerosas.
Outro ponto sensível é a responsabilidade subsidiária do ONS. Embora necessária para não deixar lacunas, essa previsão pode levar à socialização de perdas, caso indenizações sejam custeadas pelo operador e, indiretamente, pelos próprios agentes de mercado — inclusive aqueles que foram prejudicados. Isso enfraquece o caráter punitivo individual da medida e pode transferir custos novamente ao consumidor.
Mais grave ainda, os riscos de vazamento de informações e de manipulação do CMO só poderão ser enfrentados de maneira estrutural com a informatização quase integral do ONS. O modelo atual ainda depende de fluxos manuais e concentrados, o que aumenta a exposição a falhas operacionais, atrasos e ao manuseio indevido de dados sensíveis, como disponibilidade de usinas, níveis de reservatórios e previsões climáticas.
A solução está em construir um processo no qual os dados sejam enviados diretamente a sistemas informatizados por múltiplos agentes independentes, de forma descentralizada e redundante. Essa arquitetura permitiria detectar inconsistências automaticamente, aumentar a confiabilidade dos insumos e assegurar que o cálculo do preço fosse produzido por sistemas auditáveis, com logs imutáveis e trilhas de auditoria que permitissem reconstituir todo o processo em caso de questionamentos.
A informatização permitiria ainda implantar travas automáticas, validações estatísticas e mecanismos de verificação paralela, reduzindo drasticamente o espaço para erros humanos ou condutas dolosas. Com esse modelo digital, a responsabilização prevista em lei se tornaria mais objetiva, pois seria possível rastrear falhas até sua origem — seja de um agente que forneceu dados incorretos, seja de uma falha técnica.
Para os agentes de mercado e, sobretudo, para os consumidores, isso representaria maior confiança na integridade do processo de precificação, a garantia de que o custo de produção da energia está sendo definido de forma transparente e auditável, e o fortalecimento da credibilidade do setor elétrico brasileiro.